Nunca imaginara seus ossos numa parede de igreja, o nome grafado numa campa de mármore, data de nascimento, de morte; só o nome evocando a voz rouca dos reproches. Chamavam-no Maninho, sinônimo inapropriado a ele. Era temido. Calmo, juntava todos em volta para ouvir sua voz lesionada pela ternura.
Por Marco Albertim
Não soube ser gentil, não aprendera a rir, fazia mimos poucas vezes no ano, só porque mimo era carícia. Sentia-se feliz, calado, espiando a própria sombra, os dedos da mão engelhada no copo meio de conhaque. O enredo de seu passado era uma trama de orgulhos, de remorsos.
Na cabeceira da mesa, com um olho na comida, outro nos modos dos outros, vigiava cada pedaço do leitão sendo fatiado, levado para os pratos. Nutria a mesa com gorduras, massas. Dinheiro calculado, venerava-se na generosidade da feira abundante. A receita de cada prato, guardava-a na memória, com zelo, para comer como um dissoluto. A respiração fungante, bovina, espalhando os raios de sua autoridade, misturava-se à trituração da comida na boca. Queria todos fartos, a empregada também, mas destripando cada pedaço sem romper a cerimônia, a regra que herdara do pai austero. A manteiga, na manteigueira redonda, devia ser desbastada em porções verticais, de modo a medir a progressão do consumo; um terço, dois terços... Os filhos e a mulher distraíam-se com a simetria, após cada um tirar sua porção.
Antes de pegar no sono, sem avisar à mulher, levantava-se. Ela sabia, ele ia à cozinha certificar-se de que os petrechos estavam todos - sequer uma colherinha poderia extraviar-se - na gaveta. Olhava para o chão, com os óculos, distinguindo um fio de cabelo na cerâmica de azulejo; apanhava-o com o apontador, o polegar, depositava-o na lixeira sob a pia. Depois, fazia ostensiva ronda nos quartos. Os filhos fechavam a porta apenas com a maçaneta; ele abria todas, uma de cada vez, rangendo os trincos, acordando um ou outro. Não era um morto a fome, mas engendrava as despesas de modo a evitar uma tragédia no fim de cada mês. Se alguém dormisse com a televisão ligada, fazia um escarcéu; se a mesma falta ocorresse em mais de um aposento, suspeitava de um motim.
Uma vez chegou em casa no fim da tarde, começo da noite. O filho mais velho chegara, supondo que o pai viria mais tarde, porquanto na sexta-feira ele tomava uma dose de conhaque a mais, uma ou duas. O rapaz, destrambelhado, não encontrara ninguém em casa; tirou a roupa no corredor, deixou a cueca sobre o telefone, ao lado de uma bíblia que ninguém lia, grande, de bordas cingidas em ouro, vaidade e orgulho do pai. Ele interrogou todos os filhos até descobrir o autor do desleixo.
- Insânia! – gritou.
A palavra foi eleita para justificar o despotismo doméstico, agravado com a indignação de ver as escrituras sob o fedor de urina. O filho foi expulso de casa, abastardado. Passou dois meses na casa do tio, irmão do pai. Arrependeu-se e não sentiu remorsos quanto à bíblia; tanto ele quanto o pai nunca foram atentos a maçadas de padres. Arrependeu-se absorvendo a noção de decoração doméstica, sem lugar para leituras de qualquer dos Testamentos, mas zelosa da lombada em ouropel sobre a escrivaninha de mogno polido. Ultrajara o décor do santuário, um santuário sem rezas; ainda assim, que horror!
Voltou para casa; voltou aconselhado pelo tio, por ter sabido que a bílis do pai entrara em maré vazante. Não se cumprimentaram, trocaram um muxoxo de estima, de desdém; só por terem que falar, a bem do decoro familiar.
Tinha pesadelos, Maninho. Passados trinta anos do suicídio de Getúlio, não se conformava com a perda do caudilho. Nas sextas-feiras, no boteco próximo a casa, bebia além da conta, bebia como se tivesse um alvará para beber. Conversava sobre política com humor escasso, feito um advogado de causa perdida. Chegando a casa não comia, escovava os dentes para, duas horas depois, no sono, repetir do início à ponta a carta-testamento deixada por Getúlio. A mulher o acordava; queria dormir; queria dormir e tinha medo que ele, de repente, morresse apoplético. Acendia a luz do abajur, e distinguia raios sanguíneos no rosto do marido, a cada inflexão de certeza na carta. Acordava-o para que bebesse uma porção d’água com açúcar. Ele não perguntava o motivo, bebia porque se acostumara, tinha certeza de que a parceira de mais de trinta anos, não poria arsênico no copo. Com o tempo, não mais o acordou; passou a mudar de aposento no início da peroração. Sozinha numa cama de solteiro, pensava na voz cava do marido querendo tirar Getúlio da sepultura; descobriu sem querer que também retivera na memória a íntegra da carta. Resolveu voltar ao aposento marital, sem se surpreender com a variação de cada modulação. Quando ele chegava ao meio, sentia meio alívio; quando se aproximava do fim, pensava: “Faltam duas orações para ele enterrar Getúlio de vez.” Dormiam então em paz com os deveres conjugais.
Com os deveres e a cisma às primeiras horas do dia, principalmente ele, que reiniciava a incursão em cada quarto. Entrava no primeiro como um inspetor em dormitório de alunos internos; os passos no mesmo ritmo, estapeando a sola de cada pé no chinelo de couro. Inda que não entrasse para uma ronda minuciosa, espichava o pescoço, estendia a cabeça para dentro, fungando – o vício do cigarro obstruíra a respiração nas narinas -, deixando o próprio cheiro morrinhento. Tão forte o cheiro que se desprendia de sua respiração, de seus poros, que logo os filhos remexiam-se na cama, esfregando os olhos para se dar conta de que suas vidas mantinham-se reféns da canga do pai. Podia ouvir um grunhido de queixa, mas só estrugia a autoridade se ouvisse um protesto sonoro.
No segundo aposento, sem atenuar o passo, deparava o resto dos filhos já à espreita de sua ronda. Abria a porta devagar, mesmo não evitando o rangido da maçaneta. Encontrava mais dois filhos subjugados, tementes de seu zelo policial. Via-os de olhos semiabertos, espiando os minutos para dar o pinote da cama. Acontecia raramente de um ou outro permanecer deitado além da hora. Maninho voltava para os fundos da casa, para o aposento do filho desatento.
- Vai passar o dia inteiro na cama!?
As sílabas sonoras, com aparente paciência didática, destilando uma gramática biliosa. As paredes duras, frias, apropriavam-se do significado de cada fonema. Os filhos as odiavam, omitiam-nas do vocabulário de rotina.
Assim educou os filhos, sob o olhar impotente da mulher.
- Venâncio! – chamou o mais velho com o mesmo orgulho da escolha do nome na pia de batismo - Está na hora. Vá à escola buscar seu irmão.
O mais velho tinha 24 anos, vivia à custa do pai. Sabia que todo fim de tarde teria que buscar o irmão caçula na escola. Por ser o mais velho, odiava a atribuição; odiava sem queixa, débil, um ódio tênue e suficiente para sentir-se ridículo; do mesmo modo como o pai se sentira às ordens do pai, seu avô.
- Estou indo!
O pai mirava-o por cima dos óculos, a cabeça inclinada, o corpo sobre a funda poltrona de couro.
De volta, com o irmão inteiro, a tagarelice infante por toda a casa, Venâncio percebia na juntura dos lábios do pai, a satisfação risonha por ter expiado, Venâncio, uma falta desconhecida de seu próprio juízo. Ao fim de cada incidente, Venâncio entrevia um remate feliz, de mútua paga; sentia-se, no entanto, como o apostador cuja espera de riqueza se desfaz com o anúncio do resultado adverso.
Arranjou trabalho, Venâncio. Vestiu-se de paletó e gravata para vender apartamentos a famílias de pouca posse. A primeira ocupação a lhe trazer dinheiro, um dinheiro curto, bastante para bancar alguma fanfarrice. Conseguiu a ocupação depois de o pai ter pago seu tratamento dentário; limpou a boca e ouviu o que não queria.
O primeiro dinheiro que pôs no bolso não lhe deu poder para bater com os talheres, antes de destrinchar uma fatia do leitão sobre a mesa. A curta comissão o vexou. O pai sabia de seu pouco ganho, julgava-o endinheirado para desobrigar-se de dispêndios extras. À noite, com os amigos no bar, pabulava os ganhos do filho sem mencionar cifras, com suposições. O rapaz saía às manhãs com apuro nas roupas, janota de primeiro emprego.
- E o rapaz, como vai no trabalho?
- Não me diz nada, é dono de seu nariz – respondia, empinando o nariz.
- Já fala em casamento?
- Não tem idade ainda – dispunha-se a confessar a grana curta no bolso do filho, a admitir a ameaça de uma nora dentro de casa.
Venâncio deu mostras de vaidade, desjeitoso, com os votos de boa sorte, embora sem sorte. Teve a ventura de ser aceito entre os amigos do pai, experimentar não o conhaque, mas uma cerveja promitente. Começou a acreditar que, logo, talvez no próximo lance de venda, a comissão aumentaria; não aumentou. Pior: os colegas, com frequência, travaram com ele troca de caçoadas por causa do único paletó que usou em uma semana, quinze dias. A zombaria desceu o elevador, foi ao botequim, ganhou o trecho da Praça Maciel Pinheiro, onde ficava o escritório. A gabardine azul-escuro adquiriu nuança fúnebre. Logo nutriu, ele, rancor à roupa. O terno fora içado em seu peito, a partir do guarda-roupa do pai, encafuado ali desde a aposentadoria. A mulher o apreciara no começo, depois o esquecera. Agora, removido o mofo, sob o ferro de engomar, julgou a roupa com o fulgor de antes. Venâncio creu na madrasta. Depois das zombarias, queria incinerá-lo na Maciel Pinheiro, num tonel aberto, misturado a pedras de enxofre; queria assim porque o boteco onde o pai pabulava o apoio que lhe dera, ficava em frente.
Não teve coragem. Devolveu a roupa sem dizer uma palavra, depois de pedir baixa do emprego que só lhe dera amolação, e um déficit no bolso de um dinheiro que emprestara a um de seus detratores.
O pai entreviu a ameaça de outra vez ter que custear a rotina do filho. Não lhe disse nada. Recebeu a gabardine com frieza, olhando-o quando ele virou-se para o corredor rumo ao aposento. A roupa não lhe serviria também. Podia dar a um pobre em memória de Getúlio, mas não convinha contrariar a sovinice.
Noites, dias se passaram sem que despertassem interesse em Venâncio. O pai lia os jornais todas as manhãs. Não dizia que tinha recursos aplicados; confessava, suscitando suspeitas, acompanhar as oscilações da Bolsa; confessava para manter a pose das pernas cruzadas sobre o pufe à frente do sofá. Desconfiava que o tinham como mesquinho, e repetia que fazia campanha contra a esbórnia em família.
O filho aproveitou o que restara do único ganho para comprar livros; comprou romances, poesias. Leu sobre a vida de amantes, mulheres gentis, fogosas. Fantasiou a mente com galanteios polidos, o contrário do que ouvira de corretores corrutos. Lia como um recluso na cela. Desligava o televisor e acendia a luz do abajur. O pai inquiriu a mulher sobre o retraimento de Venâncio.
- Não tem o que fazer. Procura se distrair com a leitura.
- Devia ir à rua, procurar trabalho.
- Ele diz que olha nos classificados e não encontra nada parecido com o que quer fazer.
- Deitado com um livro no peito, que vocação pode ter!?
- Não diz com medo de ouvir censuras ou que riam dele. Mas disse ao irmão que quer ser escritor. Viver para ser escritor.
- Não está vivendo. Até o cabelo ele esquece de cortar. Em cima daquela cama!...
Dormindo tarde, Venâncio esquecia a hora de se levantar, faltando à mesa no café da manhã. Maninho não gostou de comer a primeira refeição, junto com a mulher, os filhos menores, sem o primogênito.
- Assim não é possível! – gritou. - Vou dizer a ele agora que mesmo em hospedaria tem horário para comer!
- Já estou de pé – Venâncio surgira com os olhos inchados do sono recém-findo.
- O café está frio. Sente-se.
A refeição correu muda, arrastou-se. O rapaz tinha fome; enquanto comeu o cuscuz, nenhum ruído se ouviu de seus dentes. Comeu com os olhos no prato, no garfo; com os sentidos no romance que deixara na mesa de cabeceira. Terminou o cuscuz. Em vez de pão, viu um monte de bolachas na pãozeira, bolachas graúdas. Tirou uma porção, pôs no prato de sobremesa sob a xícara; besuntou uma por uma de manteiga, descuidando do corte vertical da faca na manteigueira. O pai observou cada gesto do filho, a retina movendo-se para a frente, para o lado. Quando ouviu as bolachas se dilacerando na boca aberta de Venâncio, estourou:
- Deixou de comer com a boca fechada? Onde tem a cabeça? Deixou no travesseiro, no livro que está lendo. Acorda, rapaz. O sol já entrou pela janela, não está vendo? Precisa trabalhar. Anda com a cabeça cheia de minhoca doida!
- Desculpe.
- Não tem que pedir desculpa, tem que se mover, tomar banho de sol numa fila de candidatos a algum trabalho. Até de gari, mas tem que se mover. Não espere pelo inverno. Vai criar mofo antes da chuva cair.
- Não há vagas, como pode haver filas?
- Conversa de quem não quer trabalhar. Há vagas, sim. Meta a cara por aí e vai encontrar trabalho. Como todo mundo faz.
- Não sou todo mundo.
- Todo mundo precisa trabalhar, inclusive você. Vai chegar aos trinta anos deitado naquela cama, pensando num final feliz entre Tristão e Isolda?
- Está delirando, pai. São oito horas da manhã. Conhaque só daqui a doze horas, na esquina.
- Vê como fala, rapaz, vê como fala!
- Ainda hoje vou ao boteco do Manuel ver o conhaque descer na sua garganta. Não vejo a hora. É o único momento de paz que esta casa tem.
- Está faltando com respeito, o moleque!
- Respeito seus costumes, pai. Tenho todos de cor. Todos nesta casa têm seus costumes de cor e respeitam.
- Vou cortar a sua língua! – Maninho tinha na mão a serra de cortar pão, com a ponta para baixo.
Venâncio levantou-se rápido, deixando metade das bolachas. A mulher gritou. O telefone tocou cinco minutos depois; era a vizinha, amiga da mulher, oferecendo camomila.
- Não precisa, Olívia. Maninho já está calmo, já estamos calmos.
- O rapaz passou por aqui correndo, tinha brasa no rosto!
- Também já deve estar calmo. Logo volta pra casa. É apenas nervoso, mas não de fazer loucura.
Voltou para a casa à noite, tarde, contrariando o costume. Não queria encontrar o pai soprando bafos de conhaque. Sabia que só de olhar as paredes da sala, o pai desataria outro rompante. Entrou no quarto; olhou com pena o romance porque ainda não recuperara raciocínio para entender o enredo. Trocou duas palavras com o irmão, olhou a televisão sem achar graça. O irmão quis saber onde andara
- Por aí, dando marradas.
- O velho não chegou ainda.
- Pego no sono antes que ele chegue.
Maninho chegou tarde, bem tarde. Também não queria reencontrar o filho, não naquela noite. Ainda zurziam nos ouvidos as bolachas mastigadas por Venâncio. “Diabo! Malcriadez da idade! Quizila de filho contra pai, pior que pedra no sapato.” O sapato nunca incomodara o pé. Agora lhe doía a cabeça, no gozo da aposentadoria. A quem saíra o rapaz? A si mesmo. Quando filho, temera o catarro nos brônquios do pai, a voz rouca. Há semanas não repetia a carta-testamento de Getúlio, assuntando com a alma do pai noutro pesadelo.
Na incursão aos quartos, não encontrou televisão ligada. Toda a casa estava de sobreaviso. Ouviu um rádio a pilhas soltando grunhidos, ao lado do travesseiro do filho menor. Jogo do Sport. Venâncio era indiferente ao rubro-negro, frequentara o clube poucas vezes, junto com o irmão, sócio. Ele, Maninho, conselheiro, orgulhoso conselheiro. Venâncio trocara conversa com outros conselheiros, gordos e sanguíneos; depois safou-se dali sem nada dizer. O pai julgou-se desfeiteado.
Depois da ronda, pensou na carta-testamento. Getúlio era o único espectro que não o assustava, seguindo-o com a graça do charuto na boca. Por causa do conhaque, interrompia o sono. Catou na memória o discurso de Goulart na Central do Brasil; se estivesse dormindo, por certo teria um pesadelo.
Maninho não desconfiava que sua memória, cavoucando cenas refugadas, pedia auxílio para não enguiçar de vez.
Venâncio desenguiçou o costume de ler noite adentro. As brigas com o pai tornaram-se frequentes, por não cumprir o horário do café da manhã. Era o último a sentar à mesa, na frente da única xícara que sobrava depois de todos comerem. Maninho, sentado no sofá, lendo o jornal, espiando as oscilações da Bolsa.
- Ah... Bom... Ah... Bah!...
A casa na rua Manoel Borba sofreu outra comoção, quando Venâncio, entediado com o hábito da leitura sem conversar com a personagem, resolveu fazer ronda peregrina nos botecos do Pátio de Santa Cruz. Tomou duas cervejas, sentiu-se encorajado para um gole adulto; experimentou, então, cachaça com infusão de vermute; achou doce, fácil de emborcar. Conversou com os recém-conhecidos, bêbados velhos. Logo fez amizade com uma crioula que sorria com seus goles adolescentes. Ofereceu-lhe a bebida. Ela aceitou, pediu-lhe cigarro. Ele não fumava, pediu um maço de Hollywood ao despachante do balcão. A mulher guardou os cigarros sob a blusa, no sutiã. Chamou-a para dançar. Foram a uma churrascaria na sobreloja de um prédio da rua Barão de São Borja. Dançaram, trocaram beijos, tomaram chopes. Pagou a conta. Foram para um motel ali mesmo, perto, com letreiro luminoso, quartos separados por tabiques. Dormiram. A crioula, experiente, dormiu com um olho aberto, outro fechado; levantou primeiro, e com os dedos das carícias, tirou da carteira dele documentos e dinheiro. Desceu os degraus do escuro corredor, e sumiu em algum beco rumo aos Coelhos.
Foi para casa a pé; chegou vítima da puta para tornar-se refém do pai. Ouviu o que pressentira, cobras e camaleões. “Malandro!” Como se julgar malandro se não conhecia o tranco de qualquer ofício!? Comeu na cozinha um rango improvisado, foi dormir, deitar-se para esconjurar a ressaca, os insultos do pai.
Uma semana depois, alguém telefonou. Um desconhecido achara seus documentos de identidade, no jardim de casa, na rua José de Alencar. A puta, de posse da pouca merreca, tivera pena dele. Devolveu-lhe os documentos para que tivesse chance de se recuperar da falência. O desconhecido, com o nome, consultara a lista de telefones; falou com Maninho, disse que alguém com seu nome extraviara a identidade.
Quando Venâncio agradeceu, o homem lhe mostrou um cartão de visitas. Profissão: corretor de imóveis – Calheiros Empreendimentos Imobiliários. “Caramba!” A imobiliária onde trabalhara. O corretor morava numa casa bonita, com dois pavimentos, sacada florida para a rua. Era gerente de vendas. Venâncio, desde que deixara o trabalho, abominava o jargão de corretores. Apertou a mão do homem, pôs o cartão no bolso, prometeu recomendá-lo a seu pai.
- Obrigado! Não vou comprar imóvel, mas meu pai, talvez...
- Tem o meu telefone, faça o favor.
- Não vou esquecer.
Saiu dali com remorsos por ter cometido perjúrio; inda por cima tornando o pai comprador revel. Maninho jamais sairia da casa velha da rua Manoel Borba, a não ser levado pelo rabecão.
Procurou uma lata vazia para chutar, arremessar longe os agouros. Carros, ônibus, buzinas, tudo esconjurando-lhe a paciência.
Em casa, a madrasta deu-lhe a notícia. A velha casa da Manoel Borba mudaria a rotina para assistir à agonia de morte de seu chefe. Maninho, no jantar, só tivera tempo de engolir a primeira colherada de sopa. Queixou-se de dor de cabeça, foi para o sofá. A mulher preparou-lhe um chá, unguento de sua confiança. A casa ficou estranhamente muda. Não houve ronda nos aposentos. Venâncio retomou a leitura.
Maninho recolheu-se cedo. De madrugada, repetiu a carta-testamento até o meio. A mulher estranhou. Acendeu a luz, viu o rosto do marido riscado de estrias sanguíneas; gritou, acordou todos. O marido foi levado de ambulância ao hospital. Morreu uma semana depois, sem nada dizer, apoplético, sem se lembrar do resto da carta. Morreu com o pesar de todos, inclusive de Venâncio.
A viúva insistiu que Venâncio usasse o terno de gabardine no velório. Ele não quis, saiu de perto do agouro.
Seis meses depois, os ossos de Maninho foram depositados na gaveta da parede de uma capela carmelita. Ali, comungara um tempo, depois perdera o costume. A viúva pagou bem ao frade que jogou água benta na campa.
Fonte: vermelho.org.br